domingo, 15 de dezembro de 2013

DORINHA E UM CONTO DE NATAL - parte 2 - NASCE LUZIA

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...continuação.

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―Duas indigentes e um cachorro. ―um policial comentava com outro, que pelo fardamento, parecia ser seu superior. ―Não suportaram o frio, senhor. Uma pena. Bem na noite de Natal. Vou mandar o rabecão recolhe-las.

―Cortaaaaaaaaaaaaaa. Pára tudo.

O grito, num passe de mágica, fez tudo ao redor ficar imóvel. Todas as pessoas que estavam naquele beco ficaram paralisadas, parecendo estátuas. Sequer o uivo do vento atreveu-se a ronronar naquele instante.

―Corta? Como assim? ―Dorinha acordou com o grito, e sem entender patavina, sentou-se na neve. ―Quem gritou isso? E por que eu to morrendo de calor, se estava tão frio quando eu morri? ―indignou-se. ―Ei! Não era para eu ter morrido? Isso aqui é o céu?

Jujubão e a outra menina também acordaram com os gritos. Mas, ao que parecia, eram apenas eles que estavam conscientes naquele lugar esquisito. Dorinha colocou-se em pé e ajudou sua nova amiga a erguer-se também. E logo, a curiosidade tomou conta.

―Qual é o seu nome? ―Dorinha perguntou para a menina, enquanto fazia um carinho no cachorro.

―Que estranho! Faz tantos anos que eu nasci, e nunca perguntaram meu nome. Nem sei se tenho nome!

Nitidamente, a menina entristeceu. A cabeça baixou, quase colando o queixo ao peito, e dos olhos correram algumas lágrimas. Dorinha, ao vê-la daquele jeito, correu para abraçá-la, mas acabou chorando também.

―Você quer um nome, é isso? ―Dorinha perguntou, entre soluços.

―É! ―a menina sorriu entre lágrimas.

―Não, ela não quer um nome! E eu quero terminar essa história! Vocês acham que isto aqui é o que, afinal? A casa da mãe Joana? ―uma voz sem rosto retumbou por todo o local.

―Quem é esse que tá falando? ―Dorinha espantou-se, olhando para os lados e procurando minuciosamente a fonte daquela voz.

Jujubão parecia farejar algo, e Dorinha notou que o cachorro desconfiava de alguma coisa. Atiçou o cachorro e fez com que ele procurasse. Aos poucos, e como a neve deixara de ser fria, o faro do cachorro voltou, e ele seguiu um rastro que o fazia espirrar constantemente, mas não pelo que antes era a neve, e sim por alergia. Sequer precisou ir muito longe. Ao sair do beco, todos levaram o maior susto.

Um par de olhos e um sorriso imenso apareceu diante deles, flutuando no ar. Todos estaquearam, e quem mais se assustou foi a menina dos fósforos. Dorinha não conteve o espanto, porém, sabia bem de quem se tratava. Já o cachorro não se conteve, e avançou ferozmente.

―O Gato da Alice! Só podia ser você, pra bagunçar tudo aqui, gato danado! ―Dorinha sentenciou, batendo o pezinho em sinal de reprovação. ―Eu já deveria estar acostumada com a bagunça que existe pelo mundo mágico. O que tá acontecendo, gato? Tá desempregado também? Fazendo algum bico?

Aquele sorriso materializou-se em forma de gato, mas continuou flutuando, temendo um ataque do cachorro. Os olhos agora mais pareciam bocas sorrindo, e calmamente, ele dirigiu a palavra para Dorinha.

―Mocinha. Pra início de conversa, vê se eu tenho cara de ser o gato de alguém! O Gato da Alice uma pinóia! Sou independente como todos os gatos, e só aceitei entrar naquela história porque ela precisava de um certo charme. O Lewis¹ sabia disso, tanto que me deu imediatamente um papel maior. Salvei a história, eu diria!

 ―Sempre achei que você era meio atrevido e convencido. Por isso preferia o coelho da Alice. ―Dorinha continuou calma, mas no fundo já começava a irritar-se com o gato.― Mas, tudo bem. Não estranho mais nada por aqui! Agora, dá pra você parar com suas mutretas e descongelar esse povo?

―Tá. Eu topo. Mas lembre bem de uma coisa! Aqui, não sou um simples gato, muito menos o gato da Alice. Sou o Diretor Cheshire². Então, mocinha, mais respeito comigo, entendeu? ―o gato proferiu, com ares de pompa e nariz empinado. ―Ah! Já ia me esquecendo. Não sou eu que tumultuo tudo, não. Pelo que sei, a cada vez que você aparece por aqui, o departamento psiquiátrico dos personagens fica lotado. O Lobo Mau ainda tá por lá.

―Pois é! ―Dorinha concordou, baixando o olhar. ―Foi sem querer.

Quando Dorinha levantou o olhar, espantou-se novamente. Viu o gato abrindo um sorriso imenso, e de repente todos estavam se movimentando novamente. Pareciam arrumar tudo, ajeitando as coisas como se aquele lugar não passasse de um cenário de filme.

―Vamos lá, vamos lá. Não temos tempo a perder. ―o gato de Cheshire ordenava, como se realmente dirigisse um filme. ―Logo o Hans³ aparece por aqui, e se ver a gente parado, sobra pro gostosão aqui.

―Por que arrumar tudo de novo, seu diretor? Vamos começar a história novamente? ―alguém perguntou, irritando o gato.

―Por que? Por queeeeeeeee? Eu digo o porquê! ―o gato ficou exaltado, e sem querer, desceu até o chão, ficando ao alcance do cachorro, que avançou rapidamente. ―É porque na história do Hans não tem duas meninas. Também não tem cachorro. E falando nisso, dá pra alguém passar maquiagem nesse devorador de gatos e trazer um osso pra ele? Antes que ele me engula!

―Jú! Comporte-se!

―Jú? ―o gato riu descaradamente. ―Que nome horrível para um cachorro horrível. Aliás, já que falamos em nomes, qual é o nome da menina dos fósforos, afinal? Dirijo essa história desde 1900, e nunca soube o nome dela.

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A menina, que estava um pouco mais atrás, corou. Aquilo, do nada, passou a ter uma importância imensa para ela. E era estranho o fato, também, de que somente alguém de fora, vinda de muito longe, é que importou-se com tal coisa.

―Eu não sei! Não tenho nome. Me desculpem.

―Ah! Pára, vai! Assim, estraga a maquiagem. ― o gato brincou, mas logo soltou um berro. ―Maquiaaaaaaaaaaaaaaaagem. Rápido. E tragam uma escova de dentes pra esse cachorro. O bafo dele tá no meu cangote.

―Não se preocupe. Vamos achar um nome pra você. ―Dorinha olhou ternamente para a menina. ―Você tem luz própria, reluz. E na história, quando meu pai conta, ele sempre termina dizendo que você era uma luz que sempre ia para o céu. Uma luz que ia. Luzia.

A menina, ao escutar aquilo, sorriu e chorou ao mesmo tempo. Seus olhos brilharam, mas logo em seguida, fixaram-se em alguém que apareceu na entrada do beco. Todos silenciaram e também olharam. Era um homem franzino, de chapéu preto e capa, que em nada combinava com o calor que fazia entre aquela lama de água seca e neve quente.

―God eftermiddag! ―o homem falou, deixando Dorinha sem entender.

―Hans! ―o gato pareceu ser aquele que mais ficou assustado com a presença daquele novo personagem, mas tentou manter a pose. ―Não esperava você por aqui!

―Perdoem-me! ―o homem desculpou-se, polidamente― Acabei por cumprimentá-los em dinamarquês. Sou Hans, e acho que a justiça deve ser feita aqui, minha cara Dorinha. Por uma falha minha, esta menina jamais teve um nome. E sabe? Gostei de Luzia.

Hans? Quem seria Hans? Dorinha e a menina dos fósforos, agora chamada de Luzia, maravilharam-se com a educação daquele homem. Ele parecia tão normal, mas havia algo nele que encantava. No entanto, enquanto olhavam para o homem, descuidaram-se de Jujubão, que se aproximou furtivamente do gato e, na primeira oportunidade, tascou-lhe uma enorme mordida no rabo.

―Miaaaaaaaaaaaauuuuuu!

O gato soltou um berro esganiçado e descambou numa corrida sem rumo. Atrás dele, o cachorro derrubava o que aparecia pela frente, e por pouco não crava novamente os dentes no lombo do gato. Dorinha, apavorada, chamava pelo cachorro, mas de nada adiantava. E em poucos minutos, o que fora construído a mais de 160 anos acabou sendo levado ao chão. Não satisfeitos, cão e gato correram para onde os figurantes do conto estavam escondidos. Foi um pandemônio. Gritos e correria para todos os lados.

Algum tempo depois, o gato apareceu atrás daquele homem misterioso. A cena que se via era a de um campo de batalhas, com tudo destruído ou ruindo. O tal Hans parecia calmo, mas o gato tremia e desesperava.

―E agora? ―dizia ele, forçando o choro, como um verdadeiro ator canastrão. ―Este é um dos contos mais importantes do Natal! Estou arruinado! Atrasaremos tudo, e muitos figurantes daqui trabalham com o Papai Noel. Eles não poderão ir. O Natal atrasará! As filhas das renas não terão peru para comer na ceia, pois as renas ficarão desempregadas. E outras histórias sofrerão por falta de figurantes também. Que será de mim? Um gato desempregado, falido e estropiado, largado pelas sarjetas imundas dessa cidade poluída? Eca, tem uma pulga no meu rabo.

 ―Seja menos dramático, gato! ―o homem pediu, sem alterar a calma.

―Menos dramático? Isso tudo foi culpa desse cão-sauro das cavernas. E dessa... dessa... dessa invasora de mundos mágicos! Vou comunicar a diretoria, os investidores e os patrocinadores de que o Natal vai ser cancelado e pronto!


continua...

Marcio Rutes

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Notas:

¹ Lewis – referente a Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (27/01/1832 – 14/01/1898), autor de Alice no País das Maravilhas (publicado pela primeira vez em 04/07/1865);

² Cheshire – referente ao Gato de Cheshire, nome do Gato que aparece no conto Alice no País das Maravilhas; Cheshire é um condado da Inglaterra. Cheshire é uma expressão inglesa para uma pessoa que vive sorrindo ou ri muito;

³Hans – referente a Hans Christian Andersen.

3 comentários:

  1. Showwwwwwwww!! Showwwww!!!
    Marcitooooooooo, seu danado, reli e vou te contar... não tem como não se perder em meio a tanto encantamento, aventuras e às vezes, isso dá é um nó na nossa caxola, na nossa imaginação seu traquina. Tamanha essa sua criação, essa arte de imaginar e construir com elementos disponíveis e claro, se não tiver, está sempre pronto pra inventá-los.

    Você nãos sabe o quanto espereiiiiii pelo próximo capítulo e você, seu peste, gosta de atazanar a minha curiosidade e ainda não deu final pra essa história fantástica. Adorooooooooooo.

    Puts, achei muito criativo, meu querido você misturar e até colocar os autores dos contos originais no meio hehe.

    Camarote dos contos de fadas????? desde quandoooo???!!! hehe adoreiiiii.

    Menino, assim que entrei e dei de cara com essa gato charmosamente convencido, hahaha... gamei! e Soltei a minha gargalhada, claro, como é de costume diante desses seus feitios.

    Quando a nossa garotinha, a Luz se faz inteira, ia, vinha, luzia!

    Agora vemmmm cááá'!!! Que porra é essa de Rena não ter peru pra comerrrr, Marcitoo???
    Renas desempregadassss????

    Que mais que falta, hum??? hehe

    Ameiiiiiiiii e amo essas suas traquinagens. E seiiii que lááá vem ainda muita coisa.

    Beijoooooooooooo
    Sam.

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  2. Olá, Marcio. Passei por aqui só para desejar Feliz Natal. Já havia desejado por tabela no espaço da Sam, mas mesmo dois, bem misturados, unos ainda são. Assim sendo: Feliz Natal e tudo de bom em 2014!

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  3. "Faz tantos anos que eu nasci, e nunca perguntaram meu nome. Nem sei se tenho nome!"
    Esta frase dá o que pensar, meu irmão, ela nos possibilita vôos mentais acerca do que é nominável, do que é inominável e da importância entre um e outro. Demonstra bem a relatividade entre as etiquêtas fugazes e os conteúdos assimilados. Mas, deixemos a filosofia na cozinha e vamos à sala de festas….

    A seqüencia do teu conto de Natal interpenetra-se por universos paralelos de tempo e de dimensão, e faz surgir nesse "local de filmagens" presenças tanto curiosas como intrigantes (como diria certo poeta bigodudo recantista) de personagens e autores de uma outra época e continente. A história muda de tom e mistura sabores. (Fez-me pensar em certas "experiências alquímicas" com frutas e legumes torrados…) Personagens de ficção, como o gato de Carroll, descem para discutir com personagens reais deste teu conto. A questão maior da falta de nome da menina, relevado desde o início do capítulo, forçou a aparição (quase sobrenatural, diriam alguns) do contista dinamarquês em pessoa, de capa e cartola, mas (felizmente) sem guarda-chuva para bater nos outros!

    E se a pequena Dorinha pasma diante da polidez e nobreza de caráter do europeu de uma outra época, o mesmo não se dá com o seu companheiro canino, e que não esquece as desavenças naturais de sua espécie com todo felino que apareça na frente dele! (comigo é assim, mexeu comigo eu prego fogo!!!)

    E o conto quase vira letra de Vinícius quando este diz "Hay días que no sé lo que me pasa, eu abro meu Neruda e apago o sol, misturo poesia com cachaça e acabo discutindo futebol…" para se sair à francesa: Mas não tem nada não, tenho meu violão".

    O teu conto, meu irmão, é mais taxativo: ficou confuso? então o Natal vai ser cancelado e pronto!

    Mas que não se cancele jamais essa tua verve, Marcio, jamais…. Excelente!

    Um forte abraço, meu querido amigo,
    André

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