sábado, 29 de junho de 2013

COM QUE ROUPA EU VOU?

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―Sua bênça, padim.

O coro feminino soou ensaiado e automático. Na porta, 3 moças de vestido branco rodado sorriam e esticavam as mãos, em sinal de respeito.

O quarto era muito grande, digno daqueles retratados por Graciliano Ramos ou algum outro autor quando escreviam sobre a “casa grande” das fazendas do nosso agreste. Os móveis, de madeira grossa e bem entalhada, eram caros e antigos, e a situação tranquila em que aquele casal vivia não se refletia naquele momento um tanto inusitado para aquela hora da manhã.

―Deus qui abençôe ocêis, mininas. Agora, chispa daqui, qui eu i a madinha tamo si compondo.

­―Arre, Natalino. Num seja ansim, um véio ranheta. As minina só qué pidí a bênça.

―Antuérpia, minha fia. Si tudo os nossos afiado vié pidi abênça, nóis só vai pru compromisso quando ele tivé acabado. I vê sí arruma logo arguma coisa pra vistí, qui já tá tarde. Afinar, cadê Cajuíno, esse fio da muléstia, qui mandei ele prepará a caminhonete, e inté agora ele não retornô.

―Larga mão de tanta casmurrice cum nosso bisneto. O minino logo vorta. Agora, mi ajuda a iscoiê logo arguma coisa pra eu me arrumá. Num quero ir desarrumada. As minina do clube vão arrepará.

―Mininas? Aquelas lá amassaram o pão prá Santa Ceia, muié! I adispois, vinheram pra cá co tar do Cabrar. I si apressa, sinão te largo aqui.

―Pra ocêis, hómi, é fácir. Só troca as peça di baxo, que as di cima é tudo iguar.

―As peça di baxo? Percisava trocá? Bão... acho que o compromisso num é ansim, tão importante. Mas, Antuépia, num inrola. Faiz qui nem as muié da cidade grande, i vai cum pretim básico. Aquele ali tá bão.

A mulher olhou para o enorme guarda-roupas e, depois, novamente para o marido, fazendo cara de desentendida. O marido, impaciente, foi até o móvel e pegou por conta a peça de vestuário, jogando-a nas mãos da esposa.

―Mas, Natalino! Num posso ir cum esse.

―Arre, muié? Amódiquê num pode? Tão fresquinho e charmoso.

―Pruquê essa é minha mortalha. É especiar pru dia que eu se for. Num vai ficá de bom tom si eu aparece lá no compromisso cum ela.

­―Num querdito! Intão vai cum aquela carça branca, qui tá mais pra isquerda.

­―A quar? Essa?

―Não, muié... na otra isquerda. Eita, sua lésa.

―Eu? Lésa? Ocê que é um tanço. Isso num é carça, é a tua cirola (ceroula)!

―Ah! Sei lá, muié. Ocê cumprica dimais. I otra coisa. Que qui é essas coisa isquisita aí nessa gaveta?

―Seu abestado. São minhas carcinha!

Natalino pegou uma das peças e levantou, virou, olhou, e arrematou.

­―Carcinha? Dá pra visti a vaca mimosa e sobra espaço ainda. Isso é carçola, muié.

―Dá isso aqui! ―ela arrancou a peça de vestuário da mão do marido e jogou na gaveta, irritada e bufando. ―Num recramo das tua cuéca pra saco rendido que ocê usa, ou recramo? I ocê? Vai di terno i sandáia? Num vai por as butina?

­―Qui nada. O oio de pexe tá mi incomodando. Vô cás sandáia sim. I si arguém arrepará, eu...

―Ocê num vai fazê é nada. I trata di carça as butina, qui to ficando arretada.

­―Eia, muié braba. Mais é mió num atentá. Da úrtima veiz, ela quase me corta no facão. Num sei pru quê num mi casei cá fia do Zé das Cabra. Era mais mansa.

―Pruquê eu tinha dente i ela não. Foi pur isso, seu abestado.

Repentinamente, a porta abriu e chamou a atenção de Natalino.

―Abênça, padim.

―Mais num querdito. Que ocê qué, seu peste? E chispe daqui, que a madinha tá desprivinida. Ninguém dá inducação presses muleque?

―Dexa o Ariovardo, Natalino. É bão minino.

―Dexo nada. Esse, cada veiz qui mi vê, se ispicha todo, mais é só pra tenta ganha arguma coisa. Conheço bem quem me cerca. E si ele num tem o qui fazê, qui vá percura Cajuíno, aquele fio da muléstia.

A mulher fingiu que não escutou o que o marido falava, e continuou revirando o guarda-roupas. Ela, nitidamente, perdia a paciência, até que viu um vestido lustroso e todo cheio de decorações brilhantes. Pegou-o e mostrou ao marido, que entre um deboche e outro, alfinetou a esposa.

―Antuérpia, nem as quenga da Maria Gorda usa um despudoramento desses. Daonde ocê arranjô isso?

―Foi a Matirda, tua irmã, qui mi vendeu. Era o vistido dela í na domingueira do Padre Bastião. Num tá alembrado?

Natalino mordeu os lábio e calou. Remoeu que remoeu, e até abriu a boca para retrucar, mas preferiu não provocar mais. E assim ficou, vendo a esposa derrubar para a cama todos os cabides que estavam naquele guarda-roupas. Uma hora depois, a mulher estava pronta. Ou quase.

­―Muié de Deus! Que qui é isso?

―Arre! Num tenho quase ropa ninhuma! Intão, improvisei!

­―Vistido vremeio, cum chapéu redondo e essa raposa no pescoço? Ocê endoidô?

―Raposa? Raposa nada... isso é chique. E chama istóla (estóla).

―Tá um calor de dar invéja nu capeta, muié. Pra quê isso?

―Pare de me avechá, Natalino. Ocê num intende o qui vai ni nóis. Num tem um pingo di querência.

Ela baixou a cabeça e, propositalmente, soltou alguns soluços. Natalino deu de ombros, como se soubesse que havia sido vencido, e concordou. Por mais que tentasse argumentar, de pouco adiantaria. Além disso, o atraso fazia com que ele, um homem orgulhoso de ser cumpridor de seus compromissos, ardesse de pressa.

―Tá, tá. Intão vamô imbora, qui devem tá só isperando nossa chegada pra dar início no compromisso.

―Nem pensar. Farta a borsa, os sapato e, claro, o principar. A maquiage.

Natalino desceu para a sala principal e soltou o corpo para sentar em algum lugar. Por muito pouco, não erra a poltrona. Antuérpia, que o seguira até o andar de baixo, se voltou para as escadas e subiu, sem pressa nenhuma, como se fizesse mais birra a cada contestação do marido. Nesse instante, o bisneto entrou pela porta principal e olhou para Natalino, esperando uma bronca pela demora, mas não escutou um pio que fosse.

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Ao olhar para a bisavó subindo as escadas, o rapaz entendeu o motivo de Natalino estar ali largado naquela poltrona. Era sempre a mesma coisa. Então, sentou-se ao lado do bisavô e, sem ter o que fazer, calou e esperou.

Uma hora depois, Antuérpia apontava novamente pelas escadas, e ao chegar ao andar de baixo, deixou tanto Natalino quanto o bisneto de queixos caídos. O rapaz foi o primeiro a ter alguma reação.

―Vó do céu! A sinhora tá mais parecida cum pinherinho di natar.

―Cala a boca, Cajuíno. Sinão essa peste vai querê acrescê mais arguma coisa, i o compromisso num vai isperá nóis. Vamo logo.

Antuérpia deu dois passos e, do nada, o salto do sapato estalou e quebrou. Foi o suficiente para os outros dois se olharem desesperados. Sem que a mulher esperasse, os dois agarraram seus braços e a carregaram, a contra-gosto, para a caminhonete. No meio do caminho, a única coisa que ela fazia era reclamar.

―Oceis são dois animar. I ainda mi fizeram borrar a maquiage qui tanto mi deu trabaio.

―Ara, vó! Isso é maquiage? Pensei qui era minhas tinta da iscóla. I do jeito qui tá, inté parece aquelas muié lá do carnavar carióca qui passa na tv. A módiquê isso, vó?

―As minina vão tudo num chiquê só. Só eu qui vô ansim, tudo disarrumada no compromisso.

Natalino, que dirigia apressado, rangia os dentes e reclamava acintosamente.

―Nunca mais, Antuérpia. Nunca mais te aviso quando convidarem nóis prum velório.


Marcio Rutes
(Marcio JR)


segunda-feira, 24 de junho de 2013

SOMENTE PARA SEUS OLHOS

óleo sobre tela - obra de Fátima Kelbert (imagem do Google)

"Somos, de fato, postos à prova todos os dias, desde as mínimas coisas até as mais difíceis decisões. E laboriosas situações também. 
Estamos diante das escolhas antes mesmo de abrir os olhos e mesmo depois de fechá-los.

Se sonhamos, ou temos pesadelos, será por consequência dos tipos de pensamentos que alimentamos um dia inteiro? E quiçá uma vida inteira?"
Samara Bassi



Era do alto daquele prédio que ele via as manhãs nascendo ou o dia se esvaindo. Estações do ano iam e vinham, ora com suas folhas amareladas sendo sopradas pelo vento, ora com novas folhas brotando dos galhos das árvores para, em tempos vindouros, tornarem a amarelar.

Assim o tempo passava, e ele ficava por lá, no alto daquele prédio. Mas não era louco, nem tanto desistira de viver uma vida comum, junto aos seus. Apenas gostava de observar a movimentação alucinada daquela alcateia humana, que em seus momentos mais calmos, eram capazes de se engolir uns aos outros.

No que se transformara aquele local tão tranquilo a que ele tanto se acostumara em seus bons tempos de criança? Onde estava o prazer de dizer “bom dia” a um conhecido qualquer e que sequer se sabia o nome? Perdera-se a educação, ou era o mundo que estava apressado em demasia? Ou seriam os frutos amargos de uma árvore chamada Progresso?

Carroças e coches viraram automóveis de luxo, e a comunicação já quase vinha embutida na orelha das pessoas. Elas, agora, pareciam falar sozinhas, e isso sim era estranho. Mas, tudo bem. Cada um com sua pressa ou sua loucura. E ele não estranharia se, em pouco tempo, as pessoas começassem a voar sem asas. Ah! Como seria bom. Ele próprio trataria de comprar algum aparelho para isso, só para chegar bem perto das nuvens mais altas e de lá, fazer xixi mirando o mundo lá embaixo. Daria risada por saber que muitos iriam pensar que se trataria de chuva ácida.

―Como são bobos! ―comentou baixinho e soltando uma risada de canto de boca.

Voltou os olhos para uma tela branca a sua frente. Durante dias tentou captar algo para preencher de cor aquele pano já sujo pela fumaça. Sem se esperar, algumas gotas de chuva molharam a tela, e nesse instante ele reparou algo inusitado. A água da chuva reagiu com os resquícios de poeira e poluição que estavam na tela, formando um borrão estranho. “Uma mulher”, pensou ele.

―Uma linda e delicada fêmea em minha tela! Vejam só.

Foi então que sentou em seu pequeno banco, dando vazão a tudo o que brotava de seu olhos e mãos. Quanto mais chovia, mais borrava e mais ele se entusiasmava. Aquela parecia ser, definitivamente, sua melhor obra. Sim, era agora uma mulher, e era tão bela que ele, em sua empolgação, esqueceu até da chuva.

Curitiba antiga - 1952 (imagem do Google)
Aquela foi sua obra-prima, nascida do cotidiano de muitos que, com seu progresso, propiciavam a fumaça que reagiu com a chuva e se fez tinta. De resto, o talento dele deu conta. Foi uma obra sem precedentes, pintada num único traço. Mas foi somente para seus olhos. O que ele não se deu conta, é que a chuva, mesmo ajudando a criar, logo depois tratou de lavar aquela tela.

O preço da criação, no entanto, foi mais alto do que parecia. A pneumonia, causada pela chuva fria, por muito pouco não o fez arcar com a morte. Com alguma sorte, muitos cuidados e também com os remédios da modernidade, conseguiu voltar ao alto daquele prédio tempos depois.

O banco, a murada de onde ele observava o cotidiano, e também a tela no cavalete. Tudo estava ali.

Sentou e, pacientemente, esperou novamente pela chuva. Ela destruíra sua melhor criação, mas também fora responsável pela breve existência dela. Por que, então, não tentar novamente?


Por via das dúvidas, deixou um guarda-chuva disposto ao seu lado. Aprendera a lição.




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Um agradecimento

Quero agradecer, de todo o coração, ao gesto maravilhoso de Samara Bassi, que gentilmente tem me cedido o direito de citá-la (fragmentos de seus comentários aos meus textos) em minhas crônicas e contos.
Poder compartilhar daquilo que ela escreve ou pensa é um prazer único.

Mais de Samara Bassi aqui: Uma canção pra você viver mais 

Marcio Rutes
(Marcio JR)


quarta-feira, 19 de junho de 2013

DOS ELEMENTOS QUE ME COMPÕEM

imagem: arquivo pessoal - todos os direitos reservados

MÃOS
"Elas também são casas.
São, ainda, o intermédio
da criação de nossa alma 
no mundo. Na escolha 
das cores, nos traçados, 
nos rabiscos. Escrevem e 
apagam. Rascunham. Tecem 
uma constelação bonita de 
tantas outras mãos e brilham, 
quando cumprimentam a vida."

Samara Bassi






Da sugestão de uma palavra, ou do sabor de uma brisa, sempre brotam momentos inesquecíveis. E mesmo que a palavra ou a brisa sejam intocáveis, o sentimento provocado por eles é suficiente para tornar tangível qualquer sonho de voar mais alto.

Tanto falei das mãos, dos sonhos e do tempo, que creio ter feito um elo entre essas três coisas. Sempre esparsos, esses três elementos vinham a mim como um alento. Em cada período que algo não estava bem, lá estava um deles me socorrendo. Por vezes, o tempo se encarregava de cicatrizar uma ou outra ferida, enquanto que os sonhos me acomodavam num descansar da alma. Assim, tudo amainava e caminhava num ritmo todo meu, embalado pelo som de uma flauta de Pan, encontrada unicamente em meus momentos oníricos. Tantas foram as vezes que um par de mãos alvas e pequenas apareceram em meus sonhos segurando essa flauta. Mãos. Mãos segurando uma flauta. Mãos, sonhos e tempo.

Quando me dei conta, tracei toda uma vida sonhando. Nunca me deixei ficar sem esse algo a mais que permeia alguns de nós. Sim, algo a mais. O sonhar é um “querer ir além”, como se aquilo que se apresenta não bastasse. Não me refiro à ganância, pelo contrário, mas sim ao fato de buscar algo que se acredite ser bom, de descobrir novas fronteiras. Num certo dia, o sonho ficou maior do que eu, e precisou vir a tona, e um novo elemento juntou-se aos meus dias: a palavra.

Escrevi tanto, mas tanto, que nem sei se não me soterrei nas minhas próprias confabulações. Mas tudo bem, sempre foi tudo tão introspectivo, tão guardado para mim mesmo... será que foi mesmo? Não, não foi. Assim como aconteceu com os sonhos, minhas palavras também tomaram corpo e cresceram, escapando de mim. Espalharam. A brisa deu jeito de espalhá-las. E aí está o quinto elemento que compõe minha existência. O vento.

O sonho, o tempo, a palavra e a brisa. Quatro elementos que seguiram sempre comigo. Acostumei-me a eles de tal forma, que se qualquer um deles faltasse, eu próprio não me reconheceria no espelho d’água que carregamos nos olhos. Todavia, ainda faltava um elemento para ser trazido a mim: as mãos que seguravam aquela flauta de Pam em meus sonhos. Foi quando o vento e a palavra decidiram se encarregar de buscá-las.

Num sem-querer dessas esquinas do destino, o vento (carregando minhas palavras), fez uma curva e estacionou num remanso que acalentava não a música de Pan, mas sim as mãos de alguém que escrevia palavras tão sublimes, que o próprio Pan se encantava com elas e compunha suas músicas. O vento, sem pestanejar, descarregou ali as minhas palavras e voltou, tal qual um pombo-correio apressado, para me guiar até essas mãos mágicas.

O tempo entrou em ação, atiçou os sonhos, e por mais de dois anos, me fez fazer brotar palavras suficientes para atulhar de trabalho o coitado do vento. Isso tudo unicamente para banhar com letras aquele par de mãos serenas e mágicas que ele próprio, o vento, havia encontrado.

imagem: arquivo pessoal - todos os direitos reservados
Soberano, o tempo correu e fez das suas. Mas não foi carrasco. Num dia de outono, de leve brisa, aquele par de mãos fecharam um ciclo em minha vida. Essas mãos, juntamente com as minhas, num enlace de calor e magia, fecundaram algo que ficará marcado para sempre em mim. O sentimento de completude me veio, como se os cinco elementos que me formam estivessem juntos e alinhados. O espiritual e o carnal tornaram-se um só, e toquei a vida como poucos fizeram. Entendi a essência que me compõe.

Mãos. Não as minhas, mas aquelas que me guiaram para meu próprio eu. As mãos alvas, macias e quentes. As mãos daquela que compôs as notas para acertar o compasso do meu coração. Não são mágicas, mas sim milagrosas. Sabem fazer laços sem amarras, e juntamente aos braços, enlaçam num abraço onde somente o mais tolo pensaria em se libertar.


Dou-me por completo, onde cada elemento que há em mim me foi presenteado por um ser divino. O maior e mais valioso presente que me foi dado? O último elemento, claro. As mãos. E o bom é que elas me trouxeram junto alguém muito especial. Mãos, corpo, alma e coração. Alguém muito além daquilo que meu sonho mais intenso pudesse ter imaginado.


Marcio Rutes
(Marcio JR)

sexta-feira, 14 de junho de 2013

BRISA FRIA DE OUTONO

crônicas de uma música

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“Das minhas buscas, eu não sei da ordem, pois todas são prioridades e meus olhos apenas se fecham para senti-las melhor, para resgatar aquela maresia preenchendo o peito e todo o som ao redor dos meus ouvidos, mesmo que numa espreitada, numa curva, numa tsunami interna e desconhecida.
Samara Bassi






Carregava um sonho na palma das mãos. E cantava também. Cantarolava Don´t Know Why, em voz baixa e bem ritmada, enquanto caminhava em meio aquele turbilhão de pessoas apressadas. Os olhos, agora calmos, mostravam o avermelhado deixado pelas lágrimas de antes, secadas com a seda de um par de mãos pequenas e alvas. Mãos quentes aquelas.

Um esbarrão ou outro não eram suficientes para tirá-lo de seus pensamentos. Como ela estaria agora? O que estaria fazendo? Talvez cantarolando a mesma música que o tomava por horas.

Os rostos contrários quase raspavam o seu, e ele sequer se preocupava em desviar. Na realidade, ele não enxergava mais nada além da rua e da pouca luminosidade do fim de tarde. Logo anoiteceria. Uma noite feita para não ser dormida, mas sim consumida com parcimônia. Algumas estrelas apareceriam, por certo, mesmo que vítimas da luz forte da metrópole. Tão fácil confundir discos voadores com estrelas, mas ele não se importava. A artificialidade do modernismo já não importava mais. Queria apenas o natural do pio da coruja, mas isso ele não teria ali. Teria que imaginar por si próprio os gorjeios da madrugada.

O vento, um tanto repentino, barrou seus passos. Lavanda. Sentiu-se inundar pelo odor canforado que bailava pelo ar. Arregaçou a manga da camisa e cheirou os braços. Ela passara lavanda em seus pulsos, mas não era dali que o cheiro perpetuava. Vinha de longe, vinha do alto. E ele apenas afinou o olfato e seguiu o vento. Talvez uma superfície de riso estivesse ancorada no mais frio dos arredores. Era assim que ele sentia aquele cheiro refrescante, como um riso sem fim a tomá-lo.

Consumiu as escadas lentamente, passo por passo, como se cadenciasse a respiração e a passada, até que chegou diante da porta. Novamente lavanda. Entrou. A música brotou do interior daquele quarto, e num instante ele escutou

“...eu esperei até o sol raiar
não sei por quê eu não fui;
deixei você ali, onde você gosta de estar,
não sei por quê eu não fui...”.

Tantas foram as vezes em que acovardou os sentimentos, que guardou tristezas, ou que deixou de ir. Mas hoje ele entende. Não era a hora, nem aquilo que parecia ser. Não era ele ou o destino, mas um recontar de histórias gêmeas. Não era ela em outros bancos de praça, nem tanto era o vestido dela a bailar sob o sol da tarde.

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Ali era o lugar onde ela gostava de estar, e ele não a deixou ali. Desta vez não. Foi buscar um abraço devido aos dois, ou um caminhar de mãos dadas pelo chão de estrelas que ela tantas vezes pintou em letras pelas telas da vida. Vinho e macarrão nunca foram tão saborosos numa noite de outono. Foi quando o pulsar sereno da noitinha revelou o sorriso largo de alguém que saia do outro cômodo. Pele alva e mãos pequenas recepcionaram-no num abraço sem medida.

Não foi preciso esperar até o sol raiar.





X X X X X X X X X X


crônicas de uma música

O texto acima não é uma tradução e não faz menção literal à música "Don´t Know Why" de Norah Jones. Longe disso, pois em qualquer tradução, muitas vezes existe a perda da essência daquilo que se traduz. O que fiz foi apenas escrever de forma alusiva o que sinto e visualizo quando escuto tal canção.



música Don´t  Know Why (Norah Jones) - by YouTube



Marcio JR
(Marcio Rutes)